Guernica

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Quem sou eu

Santa Maria, RS, Brazil
Um sujeito inquieto com um mundo que não aceita ser como ele imagina. E ainda bem que é assim...

Antigo Hospital Universitário de Santa Maria

Antigo Hospital Universitário de Santa Maria
A construção, à rua Floriano Peixoto, iniciou em 1959. Foi inaugurado em 29 de abril de 1970, com o início das atividades dos Serviços de Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria e Puericultura

domingo, 27 de junho de 2010

Que inteligência?

Um dia desses, ao viajar para São Paulo, cheguei ao Aeroporto Salgado Filho ainda de madrugada e só embarcaria às 08:30. Fiquei observando o movimento. Gosto de aeroportos, tem um murmurinho constante, gente transitando, embarcando, desembarcando, gente diversa, com caras familiarmente desconhecidas – parecem conhecidos de outro dia. Acredito que deve ser porque mesmo nos achando muito diferentes talvez nos pareçamos muito uns com os outros.

Enquanto tomava um bom café, li e ouvi as notícias do início da manhã. Em algum canto do mundo muitos morreram, muitos estão feridos, uma quadrilha de traficantes de droga foi desbaratada no litoral sul do estado e havia ficado muito frio. Falava-se em 1,4°C em Quarai, "logo ali" na fronteira com o Uruguai. Também era mancheteada em todas as capas a “fabulosa” vitória da Seleção Brasileira de Futebol: 3 x 1 sobre a Costa do Marfim na Copa da África do Sul. Bem melhor que o jogo anterior contra a Coréia do Norte (2 x 1) mas nada de empolgação exagerada. Acredito ser um bom caminho.

Naquele momento ocorreu-me algo interessante. Lembrei de uma conversa dias atrás na qual se colocava em cheque a legitimidade do ganho de determinados jogadores de futebol, mais especificamente os astros da bola. Era dito que o triunfo financeiro de pessoas com “tão baixa escolaridade” era antagônico ao amargo suor diário de tantas outras com 3 a 4 vezes mais anos de educação formal. Os ditos letrados, portadores de diplomas universitários têm, em geral, bem pior remuneração que os não letrados jogadores de futebol mais famosos. Considerando que reconhecimento social está muito associado com ganho financeiro, a relação direta é que consideramos os jogadores menos aptos a serem mais reconhecidos socialmente e, portanto, melhor remunerados. Em boa medida, certamente, esse termo resulta da ligação do jogador com baixa escolaridade a alguém menos inteligente e essa era a tônica da conversa. Os “letrados” ou os que têm profissões definidas por cursos de especialização, nem que seja de nível médio, seriam, em tese, mais inteligentes e também mais dotados a serem mais reconhecidos socialmente e melhor remunerados.

Então fica clara a ligação entre inteligência e reconhecimento social e, na mesma linha, remuneração financeira. Incomoda a idéia de um jogador de futebol semi-analfabeto, na linguagem de senso comum, ganhar fortunas enquanto nós, alfabetizados, escolarizados, letrados e especializados, ganharmos um salário infimamente inferior.

Independentemente de qualquer julgamento de valor, se deve ou não remunerar mais ou menos os diplomados e os jogadores – isso é muito mais fruto de um sistema capitalista que privilegia os resultados econômicos, a viabilidade financeira e o retorno de investimento, o pensamento que nos move a minimizar a importância dos jogadores de futebol em nosso mundo tem a ver com a importância que relegamos à sua atividade.

Hierarquicamente, no pensamento dominante e sem uma reflexão mais apurada, a habilidade para a prática esportiva, no caso o futebol, é entendida como inferior à educação formal. Mais do que isso, o bom rendimento na educação formal é sinônimo de inteligência. Dessa forma é desconsiderado um dos pressupostos mais importantes no meio educacional na atualidade, a teoria das inteligências múltiplas – e lá se vão quase 30 anos desde a sua formulação por Gardner.

De acordo com Gardner, os seres humanos são dotados de inteligências variadas, cada pessoa desenvolvendo mais uma ou umas do que as outras. Teríamos inteligências modulares. As inteligências seriam potenciais que poderiam ser ativados ou não, de acordo com o contexto social e cultural de cada indivíduo, no qual as oportunidades oferecidas a ele, os valores e as decisões pessoais e de seus “cuidadores” cumprem papel fundamental na ativação desses potenciais. Nessas inteligências são incluídos vários tipos: a lingüística, lógico-matemática, a espacial, interpessoal (liderança), intrapessoal, musical e corporal-cinestésica (movimento) e naturalista.

Por outro lado, é necessário dizer que a inteligência humana é percebida há muito tempo pela sociedade apenas como uma revelação de saber lógico-matemático e lingüístico. Inteligência significa “ser bom em números e letras”. Jamais o senso comum associa um jogador de futebol, um artista plástico ou músico a alguém inteligente por sua prática. O jogador ou o artista plástico não podem ser inteligentes por sua prática, os doutores em medicina ou direito sim. Quando digo que sou mais inteligente que ele porque tenho diploma de curso superior estou me colocando hierarquicamente acima dele. Fica implícita também uma certa tendência a admitir-se inteligência como algo “dado”, trazido pelo nascimento, genético.

Nos jogadores de futebol poderíamos visualizar várias inteligências. Pelo menos a corporal-cinestésica, a espacial e a interpessoal são presentes em graus variáveis.

Acontece que, entre os futebolistas, como em todos os grupos, classes sociais, atividades, etnias, em ambos os sexos, existem os superdotados ou com altas habilidades e que são evidentemente mais inteligentes que os demais em alguma ou algumas áreas específicas. Ganham mais visibilidade, viram bons “produtos”. O mundo do capitalismo remunera da sua forma o que gera mais lucro e se isso significa remunerar essas inteligências não é problema dos investidores. No mundo ideal todos desejamos remuneração justa, mas isso é uma faceta do capitalismo que merece outras discussões.

Porém, o que não podemos fazer é hierarquizar inteligências segregando as que não correspondem ao mundo da formalidade acadêmica. É uma reflexão necessária e oportuna. Aliás, sobre o tema há muitas reflexões a fazer.

Bem, check-in feito, café tomado, notícias em dia, fui para São Paulo.

Referência:

GARDNER, H. The frames of mind: the theory of multiple inteligences. New York: Basic Books, 1983.

GARDNER, H. Inteligência: um conceito reformulado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

GUNTER, Z.C. Capacidade e talento: um programa para a escola. São Paulo: EPU, 2006.